terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Contos ateus

 Terça da raiz

Em homenagem a 

Euclides da Cunha e 

Câmara Cascudo



A terra do sertão não era só seca, era sábia. Sabia guardar no ventre a memória de todas as chuvas, e na pele rachada, o mapa de todos os sóis. Zé Baiano, que não era baiano mas cearense e ainda por cima, morava no sertão potiguar, sentiu a primeira mudança pelo cheiro do cardeiro, ou mandacaru em muitos estados do Nordeste. A flor branca, que antes anunciava a chuva com um perfume doce e úmido, agora murchava no caule com um odor azedo, de coisa cozida no próprio ar.

O gado já estava magro no pasto ralo, quando tinha, pois Zé tinha que complementar com ração comprada. Cada boi, para ele, só o couro e osso, na verdade, tinha história. A história do seu avô, que conquistou aquela terra com o suor e o sangue do gado de corte. Era a lembrança do primeiro bezerro que ele mesmo ajudou a parir, o calor do animal novo tremendo entre suas mãos calejadas. E ele sabia que churrasco de domingo não era só comida, era o respeito da família reunida em volta da mesa. No fogão à lenha, o estalar da gordura no braseiro era algo que estava além do cheiro e do sabor que vinha daquela carne. Ele conhecia cada animal que era sacrificado para o alimento familiar.

Mas agora, quando o vento quente do leste trazia o cheiro da queimada longe – não a queimada boa, de roçar para plantar, mas a queimada doida, que comia a caatinga inteira sem dó – Zé Baiano sentia um nó na alma. O céu, cor de ferrugem, não parecia mais a abóbada de Deus. Parecia o teto de um forno.

Seu reverendo sempre dizia:

— Confie em Deus, ele sabe a hora certa de trazer a chuva. Tudo é no tempo Dele.

Na cidade, a neta dele, Ana, estudava. Já distante dos antigos livros da biblioteca física, ela estudava por computador, com textos que muitas vezes, sua família não compreendia: medir o “fluxo de carbono”, o “albedo da superfície”, palavras que para o avô soavam como reza de outro santo desconhecido. Ela vinha todo fim de semana, trazendo pão doce, lasanha e gráficos.

— Vovô, o aquecimento global tem muitas culpas, mas uma delas é a mais perigosa — dizia, apontando para linhas que subiam como cobras venenosas num papel

— O metano do gado. É ele que segura o calor, feito um cobertor grosso em cima da gente. E a água que eles bebem… daria para plantar feijão que alimentaria dez vezes mais gente.

Zé Baiano a escutava, mascando seu fumo de rolo em silêncio. Olhava para os papéis, depois para o pasto, depois para as mãos dele, calejadas de lidar com a vida que ele agora aprendera, estar matando o chão. Uma contradição que doía mais que espinho de sodoro no meio do peito do pé.

O padre da cidade, homem bom de coração mas de ideias antigas, pregava no domingo:

— A seca é prova! É o joio a ser separado do trigo! Cabe a nós, ovelhas fiéis, confiar no Divino Pastor que nos levará a pastos verdejantes!

As ovelhas de carne e osso, na porta da igreja, baliam fracas, a procura de uma sombra que já não havia.

Ana, após a missa, falava baixo no ouvido do avô:

— Pastor nenhum vai fazer chover se a temperatura do oceano continuar subindo, vovô. É física. Não é castigo, é consequência. E tem mais. Veja que ele fala que é no tempo de Deus. Se chover hoje, amanhã ou apenas daqui a dois anos, no dia que chover, o padre vai falar que é uma graça de Deus, seja quando for e o senhor e todos vão agradecer. No entanto podemos fazer algo agora e melhorar a vida de todos. Ou não teremos mais tempo mais tempo.

Indeciso entre a fé e o que a neta falava, Zé só dizia que queria esperar mais um pouco.

A crise veio com o gado morrendo. Não de uma vez, mas devagar, uma vida por dia definhando sob o sol inclemente. Zé Baiano assistiu ao bezerro preferido dele, o Pintado, cair de lado, os olhos vidrados de um sofrimento mudo. Foi ali, naquela poeira quente misturada com o cheiro da morte, que a fé dele rachou. Não a fé em Deus, que ele ainda acreditava estar em algum lugar, mas a fé no modo de vida que herdou. Rezar não traria o Pintado de volta. Rezar não faria brotar capim da terra assada.

Ele chamou Ana

— Me ensina essa tua conta toda.

Ana trouxe mais gráficos e outras histórias tão tristes quanto o pintado morto no pasto, já com os urubus voando ao redor do bicho. Contou do pantanal que era alagado e hoje o ciclo já não fechava mais; dos peixes morrendo em água quente e sem oxigênio. Falou dos seringueiros da Amazônia, que conheciam o ritmo da floresta melhor que qualquer cientista, e que viam aquele ritmo perder o compasso.

O mundo de Zé Baiano, que era o seu sertão, o seu gado, seu céu, se alargou. Ele viu que seu boi magro no semiárido potiguar tinha parentesco com a fumaça que escurecia o céu de Rondônia, e com o rio Paraguai, mais raso a cada ano. E viu, sobretudo, que a salvação não viria do céu e sim do chão. Das escolhas.

Zé Baiano foi à feira. Não para vender ou comprar, mas para olhar. Olhou para as mãos das mulheres que vendiam abóbora, maxixe, jerimum, feijão-verde. Alimentos que nasciam com menos água, que davam sombra à terra, que não arrotavam metano. Comprou um quiabo, um inhame. Começou, num pequeno lote, uma horta pequena. Só para ver.

A terra, surpresa, respondeu. Com pouca água, mas com cuidado, o verde teimoso brotou. Não era o verde do capim, raso. Era um verde profundo, de raiz firme. Ele propôs algo na associação de pecuaristas.

— Que tal a “Terça da Raiz”? Em vez de boi na terça, comer o que nasce da terra?

Foi vaiado. Chamado de velho louco, traidor da tradição.

— Deus fez o boi para o homem! - gritaram.

Zé Baiano, calmo, respondeu

— E fez a terra também. E a gente tá maltratando a casa. Se a casa cair, cai em cima do boi e do homem. Não tem milagre que segure viga podre.

Alguns, poucos, viram a horta dele. Viram o verde. Lembraram dos pais, que também comiam mais farinha e feijão que carne nos tempos difíceis. Aos poucos, uma horta surgia aqui, outro canteiro acolá, criando uma virada de página, lenta, como o andar de uma tartaruga no sol.

Ana trouxe um presente: um pedaço de “carne” que não era de boi morto. Era feita em laboratório, de uma célula só. Coisa de outro mundo.

Fritaram.

O cheiro era parecido.

O gosto… quase.

Quase, mas não era. Faltava o sol, o pasto, a história. Zé Baiano balançou a cabeça.

— Isso aí é pra cidade, pro futuro. A gente aqui tem que achar o caminho no meio-termo.

Ele entendeu que a resposta não estava no extremo. Não era virar todos veganos da noite pro dia, coisa impossível para um povo que tem a carne de sol no sangue. Mas também não era continuar como se nada estivesse acontecendo, esperando o milagre que não vinha.

Era o meio-termo sábio. Era a terça-feira da raiz. Era criar menos boi, mas criar melhor. Era misturar a criação com a lavoura, como os avós faziam. Era respeitar o tempo da terra, que é mais lento e mais certo que o tempo do lucro.

Um dia, na feira, uma senhora comprou a abóbora dele e disse:

— Tá gostosa, seu Zé. Na terça fiz um caldo que nem precisou de carne. Encheu a barriga e deu energia, viu?

Era pouco. Era quase nada. Mas para Zé Baiano, naquele elogio simples, havia mais futuro do que em todas as preces por chuva. Era um passo. Um passo firme, dado aqui, no chão que ele conhecia.

Hoje é domingo. Ana veio da cidade. Zé Baiano acendeu o fogão de lenha. Espetou aquele cupim que poucos conhecem – uma peça menor, mais magra, de um boi criado solto e com capim nativo. Do lado, na brasa, ele pôs abóbora em rodelas, macaxeira e cebola grande.

O cheiro que subiu não era só da gordura que pingava. Era o cheiro da terra que resiste. Do acordo. Da memória que não se perde, mas que se adapta.

Enquanto comiam, o vento mudou. Trouxe um cheiro distante, não de queimada, mas de terra molhada. Nenhuma nuvem pesada no céu ainda. Talvez seja só umidade vinda do mar. Talvez seja o desejo. Mas Zé Baiano sabe, no fundo do seu novo saber, que a mudança não virá do céu.

Virá das mãos. Das mãos que plantam quiabo, das mãos que criam boi com respeito, das mãos que seguram os papéis da neta que estuda o mundo. Virá do entendimento, lento e doloroso como rachar de solo, de que somos parte da terra. E a terra, essa sim, é implacável. Não castiga. Apenas responde.

Ele mastiga a carne, saboreando cada fibra, cada memória. E no pedaço da abóbora doce e queimada, ele saboreia o futuro. Um futuro sem milagres. Feito de escolhas duras, de terças-feiras de raiz, de um equilíbrio retomado, fio a fio, no tear grande e cansado do mundo.

A salvação, se é que existe essa palavra, não estará num deus que desça das nuvens. Estará no suor que sobe da terra, carregado de nova consciência. E isso, pensa Zé Baiano, basta.

Basta e sobra.


Fim.

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