sábado, 13 de dezembro de 2025

Contos ateus 


O Dom

    Após separação, por uma das crises de casamento com seu marido, olhares condenatórios da sua congregação, com um filho ainda pequeno e com ainda seus vinte anos, em plena mocidade, Clara acordou certa manhã com uma percepção diferente do que observava todos os dias: ela podia ver a conexão causal de todas as coisas. Não era uma visão mística, mas um entendimento preciso, quase matemático, que se desdobrava diante de seus olhos como diagramas luminosos e translúcidos. Via a cadeia de eventos que levara o café a sua xícara — da chuva que alimentara o cafezal, aos caminhões que o transportaram, ao movimento da mão do vendedor. Via as razões pelas quais seu gato miava (fome, tédio, lembrança genética), e porque o asfalto da rua rachara (expansão térmica, pressão de uma raiz, erro de engenharia). Era a rede da realidade, nua e crua, sem véus.

    Ela era uma teísta devota. Acreditava num Deus pessoal, que intervinha no mundo, que tinha um plano, que respondia preces. A primeira coisa que pensou, ao ver aquele fluxo de causas e efeitos, foi: Deus está me mostrando Sua obra. Chorou de gratidão. Mas algo a perturbava: em nenhuma das sequências que via havia um “elo sobrenatural”. Tudo era matéria, energia, tempo, acaso, necessidade. Mas ela se tranquilizou: “Deus age através das causas naturais”, repetia para si mesma.

    Naquela tarde, visitou o reverendo Lucas, seu guia espiritual. Contou a ele o que parecia, agora, ser um dom. Ele sorriu, emocionado.

    — Clara, é uma bênção! Você vê a mão divina na trama do mundo!

    Clara concordou, mas um pequeno nó se formou em seu estômago. Por que, naqueles diagramas, nunca havia uma seta apontando para “vontade divina”? Havia apenas setas entre coisas do mundo.

    O dom se aprofundou. Clara agora via não apenas cadeias causais próximas, mas remotas. Ao olhar para uma criança doente no hospital, viu a sequência: o vírus, a mutação genética, a viagem de um avião, um morcego em uma caverna, desmatamento, interesses econômicos, decisões humanas. A cadeia era complexa, mas inteiramente mundana. Ela orou fervorosamente pela criança. Na sua visão, a oração gerava uma reação psicológica nela — liberação de neurotransmissores, sensação de esperança — mas nenhuma linha de luz conectava sua prece a uma alteração no estado da criança, exceto a que ela mesma poderia fazer ao visitá-la ou doar sangue.

    A criança morreu. Clara viu a causa: falência múltipla de órgãos devido à septicemia. Viu os médicos lutando com remédios, os pais chorando. Não viu intervenção alguma. O reverendo Lucas disse:

    — Deus a levou para um lugar melhor. Seus caminhos são insondáveis.

    Clara aceitou a frase, mas seus olhos viam os caminhos: todos eram totalmente sondáveis, eram apenas biologia e física. Ela começou a fazer perguntas.

    — Reverendo, se eu vejo todas as causas, por que nunca vejo Deus agindo?

    Ele respondeu:

    — Ele age de modo invisível à ciência.

    — Mas eu não vejo com ciência — disse Clara — Vejo a própria estrutura da causalidade. Se Ele agisse, haveria um ponto de origem não causal, ou uma influência externa. Eu veria.

    O reverendo franziu a testa.

    — Talvez você não esteja interpretando corretamente.

    Clara decidiu testar se havia influência externa ou a invisibilidade de tal ser. Foi a um convento de freiras que faziam orações por doentes. Ela observou, com seu dom de encadeamento, as freiras orando. Viu a fé delas, a concentração, a energia emocional. Viu os doentes à distância. Durante semanas, monitorou as cadeias causais. As melhoras ou pioras correspondiam rigorosamente a fatores médicos, ambientais, psicológicos. Nunca uma linha de força saía da oração e atingia o corpo do doente sem passar por um intermediário físico conhecido (como a própria ação de alguém motivado pela oração).

    Ela orou por um sinal claro:

    — Deus, mostre-Se em minha visão. Interrompa uma cadeia causal. Cure instantaneamente esta planta murcha.

    A planta morreu. Ela sabia da evaporação da água, a deficiência nutricional. Tudo explicado. Clara sentiu um frio. Não era raiva contra Deus, era a percepção crescente de que sua visão era incompatível com a intervenção divina no mundo. Se Deus agisse, ela veria. Mas ela não via.

    Foi a um rabino, a um sacerdote católico, a um monge budista. Todos deram explicações que, em sua visão, criavam contradições nos diagramas. “Deus está fora do tempo” – mas se Ele afeta o mundo, há um ponto de contato, e esse ponto ela veria. “Ele age através da natureza” – mas então Ele é idêntico à natureza, e por que rezar para Ele e não para a natureza, afinal, tudo não vem dela? Tudo não é físico? Mesmo os nossos sentimentos não seriam possíveis sem haver um corpo? Um cérebro? “É um mistério” – mas Clara via que não era um mistério; era ausência.

    A crise atingiu o ápice quando seu próprio filho, Miguel, ficou gravemente ferido em um acidente. Clara, ajoelhada ao lado do leito do hospital, via as causas do acidente: um pneu gasto, uma distração do motorista, uma falha mecânica. Via também as possibilidades de recuperação: a cirurgia, a medicação, a resposta imunológica. Não via nenhuma linha divina. Ela implorou:

    — Deus, salve meu filho. Mostre que estou errada. Intervenha.

    Sua visão mostrava apenas os médicos trabalhando, os remédios agindo, o corpo do menino lutando.

    Miguel sobreviveu, após uma operação de doze horas. O médico disse:

    — Foi no limite, mas conseguimos, “graças a Deus”.

    Clara olhou para o rosto do médico, exausto, e viu toda a cadeia de treinamento, estudo, tecnologia, esforço humano. No entanto, parecia que o próprio médico não percebia isso, atribuindo todo seu esforço ao que, no final das contas era algo abstrato e se era abstrato, não era tangível e da mesma forma, se não podia se tocar, não podia tocar o outro, como seu filho ou mesmo o próprio médico. Viu também a sorte: um neurônio que não se rompera, uma artéria que não entupira. Acaso dentro das leis físicas. Nenhum milagre. Apenas o mundo funcionando.

    Naquela noite, Clara percebeu que seu teísmo não tinha mais lugar. Não era uma questão de fé versus falta de fé. Era que sua visão — que mostrava a realidade causal com precisão — não permitia que ela inserisse Deus como um elemento ativo. Se ela tentasse, os diagramas quebrariam, perderiam a coerência. A realidade era autocontida. Ela chorou não pela perda de Deus, mas pela perda da narrativa que a confortava. Mas sua visão não mostrava um universo sem sentido: mostrava um universo complexo, interconectado, belo em sua impessoalidade, terrível em sua indiferença, maravilhoso em sua inteligibilidade.

    Clara tentou uma, duas, três vezes, mas finalmente conseguiu entrar na faculdade.

    Anos depois, Clara era uma cientista respeitada. Seu dom a ajudou a fazer descobertas em física e biologia. Ela nunca mais viu um indício de ação sobrenatural. Ainda sentia a beleza do mundo, a profundidade do amor, a tragédia da morte. Mas agora entendia essas coisas como parte do tecido causal, não como sinais de um plano.

    Um dia, um jovem estudante teísta, sabendo de sua história, perguntou:

    — Mas professora, como a senhora explica o primeiro elo da cadeia? A causa primeira? Não seria Deus?

    Clara, com uma xícara de café na mão, olhou sua mesa, onde havia uma foto do seu filho, agora adulto, brincando num parque com seu neto, levantou a cabeça, olhou para o horizonte, onde via as linhas de causalidade se perderem no início do universo, no limite do que se conhece. Ela sorriu suavemente.

    — Vejo até onde a física permite. Para além disso, há apenas perguntas. Mas colocar Deus ali seria como colocar um ponto de interrogação e dizer “está resolvido”. Minha visão, meu dom, me mostrou que todas as questões dentro do mundo são respondidas pelo mundo mesmo. O “antes” ou o “porquê último”… Talvez sejam perguntas que não se tenha resposta, ou que a resposta, se existir, seja tão diferente de um deus pessoal que não faria diferença para nossas preces.

    — Mas então — insistiu o jovem — como a senhora vive sem significado transcendente?

    Clara olhou para a foto com seu filho, viu as linhas de afeto, memória, genética, proteção — todas causas naturais, todas reais, todas preciosas.

    — O significado — disse ela — não precisa ser transcendente para ser profundo. Ele está aqui, nas conexões que temos, na nossa capacidade de amar e entender, mesmo sabendo que somos parte de um fluxo cego e vasto. E sei que nem todos tem essa percepção de encadeamento que observo, mas estou fazendo minha parte, revelando o que dá para estudar e se aprofundar.

    Ela encerrou a conversa. Seu dom não lhe dera todas as respostas, mas lhe mostrara onde as respostas não estavam. E, para ela, isso era mais valioso do que qualquer conforto ilusório. O universo era silencioso, mas não vazio — estava cheio de causas, efeitos, histórias.

    E ela, Clara, era uma delas, e isso bastava.

Fim.


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